Artigo: A Cor no SUS

Todos os indicadores de saúde da população apontam diferenças significativas no acesso a serviços, tratamentos e na cordialidade com que os negros são recepcionados ao procurarem atendimento médico

Por Marcia Joppert e Luís Fernando Cardoso — A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) foi instituída em 2009, com o objetivo de promover a redução das desigualdades étnico-raciais e combater o racismo e a discriminação nas instituições e nos serviços do Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, após 15 anos, apenas 7% dos municípios brasileiros implementaram a PNSIPN.

E por que isso ocorre? Porque, de forma generalizada, muitos profissionais que operam essa política em seus diversos níveis, percebem-na como desnecessária, em razão do caráter universal do SUS. Eles acreditam que todos teriam iguais condições de acesso aos tratamentos de saúde. Isso, de maneira subliminar, carrega a crença de que, no Brasil, não há racismo e de que aqui impera uma “democracia racial”, na qual as oportunidades são distribuídas de forma equitativa.

No entanto, todos os indicadores de saúde da população apontam diferenças significativas no acesso a serviços, tratamentos e na cordialidade com que os negros são recepcionados ao procurarem atendimento médico. Essas disparidades ocorrem desde o atendimento nas unidades básicas de saúde até os tratamentos mais complexos, muitas vezes, negligenciando as especificidades e necessidades dessa população.

De acordo com o Relatório Saúde da População Negra, da Agenda Mais SUS, de 2023, “o racismo institucional ocorre, muitas vezes, de forma implícita. Os preconceitos são as preferências de acordo com os quais trabalhadores da saúde determinam como será o atendimento, a atenção, o tratamento e o cuidado das pessoas, dado o seu pertencimento racial, criando-se uma hierarquia no atendimento”. Essa constatação reforça as desigualdades raciais e compromete a qualidade do cuidado prestado a essa população. Portanto, uma maior exposição a riscos à saúde, combinada com o pior acesso à atenção à saúde para as mulheres negras, leva a piores desfechos em termos de mortalidade.

Um exemplo são os registros no primeiro ano da pandemia de covid-19. Houve piora, por exemplo, no indicador de adequação do pré-natal para todas as mulheres, mas a piora foi mais acentuada para as mulheres negras (1,44%) do que para as brancas (0,54%) e teve reflexos sobre o número de mortes por causas relacionadas à gestação que atingiu aproximadamente 75 óbitos por 100.000 nascidos vivos para as mulheres negras e 65 para as mulheres brancas — uma diferença de 10 óbitos por 100.000 nascidos vivos, segundo dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS -2022).

Durante a gravidez, apenas 68% das mulheres negras (pretas e pardas) tiveram pré-natal adequado em 2019, enquanto esse indicador superou 81% para as brancas. O pré-natal é considerado adequado quando a primeira consulta é realizada no primeiro trimestre de gravidez e ao menos seis consultas são realizadas durante a gestação. Em decorrência disso, de acordo com dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), em 2022, do total de 1.256 mortes maternas, 67,1% eram de mulheres negras e 29,3% de mulheres brancas.

Ainda sobre gestantes, a pesquisa da Fiocruz A cor da dor: Iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil aponta um dado perverso e revelador quanto aos impactos da desigualdade entre mulheres negras e brancas na hora de ter um filho: mulheres negras recebem uma quantidade menor de anestesia durante o parto, devido à percepção de alguns profissionais de saúde de que pacientes negras são mais resistentes à dor.

As desigualdades não se restringem às mulheres. De acordo com dados do IBGE, a população negra vive menos que a população branca. A maior diferença está entre os homens, onde, em algumas regiões do país, homens brancos vivem até sete anos a mais que homens negros.

Diante desse cenário, é crucial fortalecer a avaliação e o monitoramento das políticas públicas assegurando que estas considerem as questões étnico-raciais, uma vez que esses mecanismos são essenciais para garantir a equidade na saúde da população negra. Para isso, é necessário incluir a participação ativa da população negra nos conselhos estaduais e municipais de saúde, permitindo que contribuam para a formulação e fiscalização dessas políticas. Somente com um esforço consciente na construção de uma política de equidade no SUS, será possível reduzir as desigualdades e superar os desafios estruturais que mantêm o racismo e a discriminação no sistema de saúde brasileiro.

Artigo publicado no jornal Correio Braziliense. Clique aqui e acesse.  

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